sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

O chamado - parte 1

Lá pelas três da matina, em 23 de dezembro, toca o telefone. Meio dormindo, meio acordado guia uma mão perdida pela escuridão do quarto para tirar o fone do gancho. A cobrar...

Já escolado, Aurélio desliga o telefone antes que o aviso terminasse. Acende a luz para conseguir encaixar o fone amontoado sobre o criado-mudo de volta à base.

Há cerca de um ano e meio, sua prima passou por perrengue semelhante, que envolvia a ameaça de bandidos no mesmo esquema: uma ligação tarde da noite a cobrar que vira ameaça. Por conta das coisas escabrosas que lhe falaram, ganhou alguns cabelos brancos. No entanto, não perdeu nenhum tostão.

Aurélio se vira na cama, cobre-se, xinga ou balbucia qualquer coisa.

Quase pegando no sono novamente, ouve o seu celular tocando. Não era nenhuma chamada identificada, dava para perceber pelo toque padrão do Mozart, reduzido a alguns tons monofônicos.

Aurélio se levanta para atender ao aparelho, cuja bateria estava carregando na cozinha. Coloca os chinelos de um jeito desajeitado e tropeça no tapete do corredor.

Ao apertar o fone verde, ouve novamente o aviso de ligação a cobrar. Solta um "saco" e desliga o aparelho. Ao voltar para o quarto, tira o fone do gancho. Aurélio quer paz.

Aurélio volta a dormir e então salta da cama, assustado. Alguém bate à porte em alto e bom som... E ele mora sozinho no apartamento 33 em um condomínio simples na Zona Norte de São Paulo...

sábado, 8 de dezembro de 2007

Passageiro no domingo escuro - parte final

Assim como seu coração nunca mais bateu, o coração de Antônio também nunca mais sentiu. Era indiferente aos milhares mortos pelo caça cujo projeto inicial concebeu há muitos anos, durante um baile.

Fernanda superou. Redescobriu o amor com Carlos e tiveram gêmeos. Levou uma vida pacata, honesta, humana e alegre. Carlos lhe foi fiel até o fim, pasme.

E, enquanto isso, no ônibus:
- Realmente... Caças... Eu deveria me envolver mais com esses projetos. Seria muito mais fácil do que bater de porta em porta - reflete o ser com a foice em punho.

Antônio percebe que está no mesmo ônibus de anos atrás, com a roupa de segurança voltando do trabalho. Tenta entender o que ocorreu, mas seus pensamentos se perdem. Lembrava-se apenas de uma figura que passou pela catraca com uma foice em punho. Em breve, até essa lembrança se perderia.
- Mas lembre-se disso: viva sua breve vida. Você não tem muito tempo, assim como ninguém - revelou a figura em negro, enquanto colocava a foice na altura do pescoço do segurança.

Antônio desceu no ponto final, como de costume. Tentava se lembrar como chegou ali.

Em poucos minutos, percebeu como estava feliz por estar a caminho de casa e perto de rever Fernanda e seu filho. A vida era dura, mas sorrisos tornam qualquer lugar mais gratificante. Antônio e sua família foram muito mais alegres deste dia em diante.

E, aparentemente sem qualquer relação a Antônio, a indústria de defesa seguiu com lucros recordes.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Passageiro no domingo escuro - parte 2

Caros, agradeço muito pela colaboração. Tomei a liberdade de copiar colar os comentários do primeiro post e jogar para cá, dando uma pequena revisada. Manterei os comentários originais pendurados no meu post anterior.

Em tempo: esta história acaba em 8 de dezembro. Então iniciarei um outro conto. Conto com seu apoio!

Rodrigo disse...
Posso me sentar aqui ao seu lado? Pergunta a estranha criatura encapuzada. Sua voz é suave, quase um sussuro, porém arrepia até o fundo da alma. Lembrando das palavras do senhor, Antonio responde: Claro fique a vontade. A criatura acomoda-se ao lado de Antonio, ele sente o ar gelado que a criatura emana ao seu redor. Ela se senta, apóia a foice no banco do lado, suspira, vira para Antonio e pergunta:Você ja sentiu vontade de largar tudo? Sabe, há muito tempo eu trabalho fazendo a mesma coisa porém nunca sou reconhecida, aliás, sou criticada...Você já teve vontade de saber o que seria da sua existência se você pudesse ter escolhido outro caminho? 18 de Outubro de 2007 18:24

Belcrivelli disse...
Antonio se surpreende com a pergunta. Pensa brevemente sobre a sua difícil situação financeira e sobre como seria bom ter mais dinheiro. Seria bom, muito bom. Mas outra vida? Isso ele nunca havia pensado antes. A vida dele era essa e pronto. Nunca havia se imaginado escolhendo outro caminho. A figura encapuzada cobra uma resposta:- E então, você já teve vontade? Mas Antônio não consegue falar, pois tem a nítida impressão de que as palavras não sairiam de sua boca se ele tentasse. Antônio não sabe ao certo se está com medo ou se simplesmente está tão acostumado à sua vida que nunca havia pensado em ter vivido de outra forma.

Então, meneia negativamente com a cabeça.- E se eu lhe dissesse que posso dar-lhe uma nova oportunidade, uma chance de recomeçar onde as suas escolhas determinaram quem você é hoje? Você poderia fazer novas escolhas. Que tal? Antônio arregalou os olhos. Que idéia absurda! Como ele poderia fazer uma nova escolha? Então, pensou na época em que ele e a sua atual esposa ainda eram namorados. Era o último ano do colegial. Eles mataram muitas aulas para namorar, ela engravidou e ele mal terminou aquele ano, nunca mais voltando a estudar. Precisou trabalhar muito, depois vieram mais filhos e ele nunca pode fazer a tão sonhada faculdade. Se ao menos ele tivesse se concentrado nos estudos e nunca tivesse namorado a Fernanda...

- Sua escolha foi feita. Parece-me que você terá um futuro bem diferente pela frente!

- Espere, eu não fiz escolha nenhuma, eu não disse nada, eu...

Era o dia do baile de formatura. Antônio tinha 17 anos e não tinha um par para dançar, pois passara o ano se preparando para o vestibular. Ele não tinha tido tempo para as garotas, pois precisou se concentrar nos estudos. E havia funcionado, pois passou em primeiro lugar em engenharia mecânica na USP. Sua cabeça fervilhava com as novas possibilidades. Seu sonho era trabalhar na Aeronáutica e ser projetista de aviões.Do outro lado do salão, Fernanda olhava para Antônio e suspirava. Ela havia se declarado para ele, mas ele dissera que não tinha tempo para ela, pois precisava se dedicar à sua carreira profissional.O baile acabou e Antônio não dançou nenhuma música. Passou a noite sentado, fazendo planos para o futuro. Vinha de uma família pobre e sabia que se queria ter algo, tudo dependia dele. Ele iria se empenhar ao máximo! 1 de Dezembro de 2007 08:07

André Bicudo Larrubia disse...
A música tocava alta no baile e os estudantes se divertiam. Fernanda estava muito entristecida pela recusa de Antônio. Não via mais qualquer razão para estar ali. Em seus devaneios mais terríveis, não via razão para permanecer viva, já que não poderia ter o seu amor. Inconsolável.

Do outro lado do salão, Antônio fechava os olhos e deixava-se levar pela canção. Não, não era a canção. Era o som grave e ritmado da batida ecoada em muitos megawatts. Não, não era o ritmo da música. Era, na verdade, do seu coração. Como podia seu coração, a seus ouvidos, sobrepor-se a todo aquele barulho? O tom grave aumentava cada vez mais e o irritava.

Antônio arregala os olhos e tapa, em vão, os ouvidos. Era ensurdecedor. O copo que segurava se espatifa: vidro e gelo pelo chão. Silêncio. Antônio nada mais ouve. Paulatinamente, começa a perceber a música do baile. No chão, busca com os olhos alguma resposta entre cacos de vidro e gelo derretido sobre o assoalho. Ali ele viu um avião. E seu coração nunca mais bateu. 2 de Dezembro de 2007 14:00

sábado, 6 de outubro de 2007

Passageiro no domingo escuro

Lá pelas 10 da noite, a área ao redor da Estação da Luz não é lugar para qualquer um. Mesmo após a reforma, as sombras engolem calçadas, muros de tijolos e pessoas que andam apressadas para qualquer destino.

Dentro das sombras, comumente, encontramos uma centelha de luz. Muitas vezes é um isqueiro ou um fósforo para acender um cachimbo improvisado. A R$ 1 uma pedra de crack e com a miséria correndo solta, é fácil ver mais dessas luzes por lá.

A área não é um deserto. Trens e metrôs vêm e vão com seus passageiros no local, assim como a estação de metrô. Contudo, entre a chegada de uma composição e outra, a região tem um aspecto sinistro e deserto. Um cenário que dá a entender que qualquer alma por lá só está ali porque realmente precisa.

Antônio trabalha em Santo André e vive em São Paulo, indo no sentido oposto da maior parte do proletariado. Segurança de banco, foi obrigado a procurar serviço depois de a empresa para qual trabalhava na capital falir. É porque perderam um contrato com um banco enorme após descobrirem que um dos sócios da empresa para a qual Antônio trabalhava era, fora do expediente, informante para uma quadrilha de assaltantes.

Mas isso é outra história.

A escuridão não metia medo no segurança, pois já passou por muita coisa. "Se bem que poderiam consertar estes postes", pensou consigo mesmo, enquanto caminhava para o ponto do Vila Leopoldina-Luz.

Antônio – "gente de bem", diriam seu amigos – estava acostumado com os plantões e a distância. Ocupava sua mente com coisas domésticas simples, esquecidas com freqüência, como o riso da mulher e o brincar com o filho. Acontecia também de lembrar das cobranças como "quero um computador" e "a lavadora quebrou e precisamos consertar". Ficava um pouco emburrado e depois consentia. "Tudo se resolve. Só para a morte não há solução."

Com bastante sorte, foi o último passageiro a entrar antes da partida. Não tinha lá muita gente: cobrador, motorista e uma meia dúzia de pessoas que chegaram no trem vindo do ABC Paulista. Havia também três adolescentes fazendo algazarra.

O ônibus seguiu viagem e Antônio olhava pela janela com as paradas típicas do ônibus para que as pessoas descessem e subissem. Lá pelas tantas, ficou muito surpreso com a escuridão na cidade. Mal via os postes de iluminação. Ao encarar as luzes, parecia que nada as segurava tamanho o breu.

Ouve-se a repetitiva campainha para avisar o motorista para parar no próximo ponto.

– bléééin

O ônibus reduz, aproxima-se da calçada. Um homem de uns 60 anos, de 1,80 m, anda pelo corredor do ônibus, começa a descer, mas pára por alguns segundos no primeiro degrau. Ele olha para Antônio, aponta-lhe o dedo e diz. "Daqui dois pontos, uma prima minha virá falar contigo. Trate-a bem." O senhor desceu, a porta se fechou, Antônio o ficou encarando e o ônibus começou a acelerar. Com um sorriso, o homem acenou para Antônio, que se deu conta que usava luvas. Parecia dizer algo, mas não foi possível entender o que era.

Olhou à volta, só havia ele de passageiro e a escuridão se acentuava. "Tá ruim a luz aí, né?", comentou com o cobrador em voz alta. O cobrador continuou falando com o motorista, normalmente, como se não desse atenção ou não tivesse ouvido.

O carro encosta próximo ao ponto, a porta da frente abre. Entra um vulto de trajes pretos esfarrapados carregando nas costas uma foice. A figura, bem alta, acena com a cabeça encapuzada para o motorista, que retruca com um sonoro "boa noite!". A porta se fecha e o ônibus começa a andar. O ser trajado de preto movia-se lentamente, mas não parecia andar. Era como se estivesse com patins - os quais Antônio não ouvia, passando pelo chão metálico - ou então flutuando.

A figura de preto – provavelmente prima do senhor de 60 anos que desceu há dois pontos – parou diante da catraca, pendurou provisoriamente em uma barra de alumínio a enorme foice com a parte da lâmina voltada para cima e olhou para o cobrador. Bom não é possível dizer ao certo se "olhava" para o cobrador, pois seu capuz cobria todo o rosto. Digamos apenas que o a parte do capuz onde se convém ficar o rosto estava apontada para o rosto do cobrador.

"Muitas viagens hoje?", pergunta o cobrador.

A figura de negro consentiu com a cabeça.

Com as mãos, cobertas por longas luvas negras, o novo passageiro começou a apalpar a cintura, encontrou algo no bolso e tirou. Era um bilhete único. Aproximou do leitor, ouviu o bipe, pegou a foice de volta e passou pela catraca.

Mesmo olhando de frente, não é era possível encontrar um rosto. Antônio estava petrificado de medo, pois se houvesse uma personificação da morte, deveria ser esse passageiro - ou passageira.