Passageiro no domingo escuro
Lá pelas 10 da noite, a área ao redor da Estação da Luz não é lugar para qualquer um. Mesmo após a reforma, as sombras engolem calçadas, muros de tijolos e pessoas que andam apressadas para qualquer destino.
Dentro das sombras, comumente, encontramos uma centelha de luz. Muitas vezes é um isqueiro ou um fósforo para acender um cachimbo improvisado. A R$ 1 uma pedra de crack e com a miséria correndo solta, é fácil ver mais dessas luzes por lá.
A área não é um deserto. Trens e metrôs vêm e vão com seus passageiros no local, assim como a estação de metrô. Contudo, entre a chegada de uma composição e outra, a região tem um aspecto sinistro e deserto. Um cenário que dá a entender que qualquer alma por lá só está ali porque realmente precisa.
Antônio trabalha em Santo André e vive em São Paulo, indo no sentido oposto da maior parte do proletariado. Segurança de banco, foi obrigado a procurar serviço depois de a empresa para qual trabalhava na capital falir. É porque perderam um contrato com um banco enorme após descobrirem que um dos sócios da empresa para a qual Antônio trabalhava era, fora do expediente, informante para uma quadrilha de assaltantes.
Mas isso é outra história.
A escuridão não metia medo no segurança, pois já passou por muita coisa. "Se bem que poderiam consertar estes postes", pensou consigo mesmo, enquanto caminhava para o ponto do Vila Leopoldina-Luz.
Antônio – "gente de bem", diriam seu amigos – estava acostumado com os plantões e a distância. Ocupava sua mente com coisas domésticas simples, esquecidas com freqüência, como o riso da mulher e o brincar com o filho. Acontecia também de lembrar das cobranças como "quero um computador" e "a lavadora quebrou e precisamos consertar". Ficava um pouco emburrado e depois consentia. "Tudo se resolve. Só para a morte não há solução."
Com bastante sorte, foi o último passageiro a entrar antes da partida. Não tinha lá muita gente: cobrador, motorista e uma meia dúzia de pessoas que chegaram no trem vindo do ABC Paulista. Havia também três adolescentes fazendo algazarra.
O ônibus seguiu viagem e Antônio olhava pela janela com as paradas típicas do ônibus para que as pessoas descessem e subissem. Lá pelas tantas, ficou muito surpreso com a escuridão na cidade. Mal via os postes de iluminação. Ao encarar as luzes, parecia que nada as segurava tamanho o breu.
Ouve-se a repetitiva campainha para avisar o motorista para parar no próximo ponto.
– bléééin
O ônibus reduz, aproxima-se da calçada. Um homem de uns 60 anos, de 1,80 m, anda pelo corredor do ônibus, começa a descer, mas pára por alguns segundos no primeiro degrau. Ele olha para Antônio, aponta-lhe o dedo e diz. "Daqui dois pontos, uma prima minha virá falar contigo. Trate-a bem." O senhor desceu, a porta se fechou, Antônio o ficou encarando e o ônibus começou a acelerar. Com um sorriso, o homem acenou para Antônio, que se deu conta que usava luvas. Parecia dizer algo, mas não foi possível entender o que era.
Olhou à volta, só havia ele de passageiro e a escuridão se acentuava. "Tá ruim a luz aí, né?", comentou com o cobrador em voz alta. O cobrador continuou falando com o motorista, normalmente, como se não desse atenção ou não tivesse ouvido.
O carro encosta próximo ao ponto, a porta da frente abre. Entra um vulto de trajes pretos esfarrapados carregando nas costas uma foice. A figura, bem alta, acena com a cabeça encapuzada para o motorista, que retruca com um sonoro "boa noite!". A porta se fecha e o ônibus começa a andar. O ser trajado de preto movia-se lentamente, mas não parecia andar. Era como se estivesse com patins - os quais Antônio não ouvia, passando pelo chão metálico - ou então flutuando.
A figura de preto – provavelmente prima do senhor de 60 anos que desceu há dois pontos – parou diante da catraca, pendurou provisoriamente em uma barra de alumínio a enorme foice com a parte da lâmina voltada para cima e olhou para o cobrador. Bom não é possível dizer ao certo se "olhava" para o cobrador, pois seu capuz cobria todo o rosto. Digamos apenas que o a parte do capuz onde se convém ficar o rosto estava apontada para o rosto do cobrador.
"Muitas viagens hoje?", pergunta o cobrador.
A figura de negro consentiu com a cabeça.
Com as mãos, cobertas por longas luvas negras, o novo passageiro começou a apalpar a cintura, encontrou algo no bolso e tirou. Era um bilhete único. Aproximou do leitor, ouviu o bipe, pegou a foice de volta e passou pela catraca.
Mesmo olhando de frente, não é era possível encontrar um rosto. Antônio estava petrificado de medo, pois se houvesse uma personificação da morte, deveria ser esse passageiro - ou passageira.